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O depoimento testemunhal e as falsas memórias
Regiane da Silva Cardoso
29 de set. de 2024
No âmbito do processo penal, a depender do tipo de crime envolvido, a palavra da vítima tem especial relevância. Destacam-se, nesse campo, os crimes sexuais.
Desta feita, mesmo sendo crimes que, em sua maioria, deixam vestígios, o cometimento “escondido” faz com que o magistrado, se não encontrar notória contradição, considere como verdadeira a versão apresentada em juízo.
Ressalta-se que o fenômeno das falsas memórias pode acontecer em qualquer tipo de crime, e existem fatores que fundamentam o aparecimento de tais memórias, conforme será exposto a seguir.
Segundo Jaime Alves (2024, p. 424)[1], o estudo das falsas memórias pertence ao campo da Psicologia, no entanto, não raras vezes produz efeitos imediatos no campo jurídico, o que demanda uma atenção especial, principalmente por parte do criminalista.
Falsas memórias, de forma simplificada, são recordações equivocadas sobre fatos que não aconteceram. Mesmo que tais recordações sejam vívidas, narradas com maior ou menor riqueza de detalhes, não deixam de ser veementemente falsas. No campo penal, quando não filtradas adequadamente, podem adquirir condição de prova idônea e fundamentar uma condenação injusta.
Utilizando-se dessa ciência, o Innocence Project Brasil, importante projeto que busca livrar do cárcere inocentes injustamente condenados, já foi responsável por reverter diversas condenações.
Para entender o fenômeno das falsas memórias, é essencial compreender o procedimento de formação da memória que obedece a três fases: 1) o momento da captura do evento; 2) o momento do armazenamento do evento; 3) o momento da reprodução do evento. Havendo falhas ou sugestionamento em qualquer uma dessas fases, o cenário propício para o surgimento das falsas memórias estará criado.
Segundo Aury Lopes Júnior (2019, p.589)[2], no tocante ao reconhecimento pessoal, as falsas memórias podem imperar e conduzir a um reconhecimento equivocado considerando: a existência de diversas variáveis que modulam a qualidade da identificação, tais como o tempo de exposição da vítima ao crime e de contato com o agressor; a gravidade do fato (a questão da memória está intimamente relacionada com a emoção experimentada); o intervalo de tempo entre o contato e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (visibilidade, aspectos geográficos etc.); as características físicas do agressor (mais ou menos marcantes); as condições psíquicas da vítima (memória, estresse, nervosismo etc.); a natureza do delito (com ou sem violência física; grau de violência psicológica etc.), enfim, todo um feixe de fatores que não podem ser desconsiderados.
Ressalta-se que as falsas memórias não se confundem com mentiras, tendo em vista que fazem parte de um processo inconsciente. Nesse sentido, é comum o magistrado fundamentar no sentido de que não há motivos para duvidar da palavra da vítima pois esta não teria nenhum motivo para incriminar o acusado. No entanto, ainda que não existam motivos para mentir, o fenômeno das falsas memórias pode estar presente pois não há relação com a intenção de esconder ou manipular a verdade.
Sobre essa temática, o eminente Ministro Rogério Schietti, no julgamento do HC 903.268/SP, recentíssimo (05/09/2024) explicou que: Não se trata de insinuar que a vítima mentiu ao dizer que reconheceu o acusado. Chama-se a atenção, nesse ponto, para o fundamental conceito de “erros honestos” trazido pela psicologia do testemunho. Para este ramo da ciência, o oposto da ideia de “mentira” não é a “verdade”, mas sim a “sinceridade”. Quando se coloca em dúvida a confiabilidade do reconhecimento feito pela vítima, mesmo nas hipóteses em que ela diga ter “certeza absoluta” do que afirma, não se está a questionar a idoneidade moral daquela pessoa ou a imputar-lhe má-fé, vale dizer, não se insinua que ela esteja mentindo para incriminar um inocente. O que se pondera apenas é que, não obstante subjetivamente sincera, a afirmação da vítima pode eventualmente não corresponder à realidade, porque decorrente de um “erro honesto”, causado pelo fenômeno das falsas memórias.
Assim, é essencial a análise completa do conjunto probatório dos autos, apontando eventualmente as inconsistências entre o depoimento contaminado e as demais provas dos autos, a fim de evitar condenações injustas, que coincidentemente não são tão raras como se acredita.
[1] Alves, Jaime Leônidas Miranda. Fábrica de Criminalistas: manual da defesa criminal para defensores públicos e advogados / Jaime Leônidas Miranda Alves. – 2 ed. – Leme – SP: Mizuno, 2024. 584 p.
[2] Lopes Jr., Aury Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 16. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019. 1. Processo penal – Brasil I. Tı́ tulo.
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